Na passada Terça-Feira, o Jornal de Notícias colocou na primeira página uma fotografia da Presidente da Câmara de Leiria de braço dado com José Sócrates. A cena poderia ter sido retirada do cardápio das boas relações entre Governo e Autarquias, mas nem a pose de Estado dissimula o desiderato – José Sócrates foi a Leiria compensar o desvio do aeroporto da Ota para Alcochete com o anúncio da adjudicação dos 6,3 quilómetros da auto-estrada que permitirão ligar a A1 à A8. Em jeito de oferenda, o Ministro das Obras Públicas anunciou que «era importante que a população de Leiria estivesse isenta [de pagar portagem] pois irá utilizá-lo para o seu dia-a-dia de trabalho.»
Não discuto a necessidade dos tais 6,3 quilómetros de asfalto, uma vez que, mesmo achegada a Lisboa, Leiria já faz parte do Portugal sistematicamente negligenciado pelo poder central. O que não se percebe e se questiona é o critério do Ministro. Num país que já andava a duas ou três velocidades, Mário Lino tem convertido as estradas e auto-estradas de Portugal num pântano de livre arbítrio em que o que serve para o Algarve não se aplica ao Minho Litoral e o que se borla nas Beiras paga-se caro em terras de Basto.
Não discuto a benevolência do Governo ao procurar isentar os leirienses de pagar portagem na sua circular. O que se questiona, como salienta Vital Moreira no blogue Causa Nossa, é a perigosidade de tal medida que, sendo discricionária, acrescenta injustiça a um sistema já repleto de perversidades. No meio desta balbúrdia, eufemismo de um autêntico «salve-se quem puder!», o Governo tem desbaratado a posição de justo (re)distribuidor de recursos com vista ao desenvolvimento equilibrado e integrado do território nacional. As injustiças estão à vista de todos.
Comecemos pelas circulares. Quem vem do Porto para Braga pela A3 desembolsa 2,95€, valor que inclui o custo da variante de Braga, paga pelos utilizadores que provêm da A3 e da A11 e sem custos para os restantes utentes. Já em Guimarães a situação é mais gravosa – os vimaranenses não podem fazer uso da sua circular sem pagarem a respectiva tarifa na portagem. Porém, em Lisboa e no Porto, as circulares não têm custos para os utilizadores, sendo integralmente suportadas pelos impostos de todo o país. É assim que o poder central, habituado a carpir as desigualdades estruturais e a cobri-las num manto de falsas promessas e ilusões, condena o Portugal-fora-de-Lisboa-e-do-Porto.
Nas auto-estradas o cenário é similar. As gentes de Basto, geograficamente condenadas à interioridade, vêm-se obrigadas a pagar directamente a sua estrada em portagens e a dos outros em impostos. Do mesmo modo, viajar entre Braga e Guimarães pela A11 custa a um trabalhador que circule diariamente entre as duas cidades mais 120€/ano do que a um Lisboeta que percorra os mesmos 14 quilómetros entre Pontinha e Zambujal. No Minho, as auto-estradas são pagas a preço de luxo num país que, como se tem visto, ainda mal se sabe sentar decentemente nos bancos da escola.
As auto-estradas SCUTs, invenção da era de António Guterres, depressa se converteram numa teia de interesses dificilmente explicados por critérios que não encaixem no eleitoralismo mais evidente. A situação actual, além de grandemente penalizadora para os que pagam auto-estradas, tem servido para maximizar distorções territoriais. Não é por acaso que as gentes de Viana ou Esposende valorizam as relações comerciais e económicas com o Porto em detrimento de Braga, corporizando um exemplo vivo do impacto de uma auto-estrada SCUT no sentido de favorecer a região mais desenvolvida (Porto versus Braga), acentuando, ironicamente, as assimetrias que visava combater.
Sócrates prometeu mantê-las até ao fim, mas depressa se apercebeu do tamanho da injustiça. Voltando com a palavra atrás, acrescentou-lhe uma injustiça ainda maior quando imputou a factura ao Norte através de uma fórmula tão credível como os estudos que sustentaram o aeroporto da Ota durante anos a fio. Num cenário de critérios absolutamente discricionários e inválidos, políticas rodoviárias inconsistentes e discursos populistas, eleitoralistas e incoerentes, não vejo outra justiça senão o cumprimento, sem excepções, do princípio do utilizador-pagador.
Seja como for, só num país habituado a sentar-se ao volante para virar a primeira esquina é que auto-estradas ganham eleições. Assim se vive num país de pernas para o ar…